Não custava

No meio do vagão o vendedor sem mercadoria tinha apenas sua sinceridade. Despido de promessas só lhe restava a realidade. A verdade é que são muitas realidades e entrar na do outro parece, cada vez mais, uma distância intransponível. Não sei se o silêncio, se os olhares que o evitavam, faziam por costume, com remorso, com raiva ou desprezo. As pessoas pareciam tão longe que era difícil identificar qualquer sentimento e talvez por isso, pela indiferença, tenha doído ainda mais. O vendedor saiu do script e já não pedia ajuda, só queria que alguém lhe visse, que alguém ao menos o fizesse sentir que fazia parte. Deixou o vagão mais surrado que entrou, talvez a fiscalização que lhe tirou as 6 caixas de chocolate tenha sido mais gentil do que aqueles que lhe tiraram a humanidade.

“Intersecção”

No semáforo onde a vida que não espera, pode também se perder. Seu Nelson tentava segurar os quatro netos enquanto seus olhos perdidos no horizonte diziam mais que qualquer palavra. A filha havia sumido faz tempo, ele mal lembrava o que era descanso. Seu Nelson fez o que era preciso, fez o melhor que podia sabendo que no máximo seria o bastante, só não fez escola, não teve estudo, não teve escolha. Este senhor visivelmente fatigado pelos anos, por um caminho que não lhe demonstrou bondade mesmo com toda sua perseverança, enxergava agora na ponta de seu cigarro uma metáfora de sua existência. O pouco prazer que tinha era o mesmo que lhe trazia o fim.

Ao seu lado, embaixo de um terno preto e gravata impecável estava Doutor Clóvis. Distinto em todos aspectos, parecia vir de outro planeta quando colocado ao lado de seu Nelson, mas compartilhavam a mesma calçada. Doutor Clóvis estava sozinho, deixara a pouco tempo o Fórum onde defendeu mais um cliente em troca de muitos trocados. Formado na melhor instituição pública do país, capa de revista, sua família não conheceu necessidade. Para ele o tempo lhe servia e aquele semáforo era um desafio a sua paciência, e soltava fumaça pelas narinas como um touro encarcerado.

Eis a única outra semelhança entre “seu” e “Dr”, fumavam a mesma marca e assim que o farol abriu sem titubear, duas bitucas se encontraram na sarjeta, sujando a mesma cidade.

“Palheta de Cores”

Crescer muda muitas coisas na vida. É complicado ver tantas inocências se desfazerem, tantas cores desbotarem. O sorriso era mais fácil, o mundo cabia na palma da mão, e tudo era uma diversão. Éramos mais livres em nossas atitudes e pensamentos, nascemos extremamente sinceros. Meu mundo sempre foi completo nem que passasse o dia entre a janela e a porta do quarto. Bastava-me. Pois não sei bem quando vieram me mostrar tudo que me faltava, tudo que ainda não tinha. Que direito tinham de fazer em meu universo um lugar para tanta ausência? Não me adiantava mais passar a chave, a vida lá de fora já havia invadido meu interior, e assim o colorido foi ficando preto e branco. Pelos dias, o que acreditava para este espaço meu na existência foi desmoronando entre cicatrizes e decepções. Há quem persista, há quem desista, há quem vá com a maré. E todos tem suas razões. Fiquei em algum meio termo, sendo incapaz de manter algumas idealizações, e com tantas outras que guardei para mim.

Recentemente, percebi em um amigo amores e alegrias das quais não imaginava mais ser possível, coisas de um passado distante. Ainda mais breve na história outro companheiro se viu “re-educando-se” ao romantismo que sua história tinha feito abandonar. Eu mesmo, depois de doer em mim e no próximo, vagando pela condição da minha solidão real, encontrei a felicidade que parece ter nascido comigo. Talvez crescer seja uma travessia, e o quadro preto e branco a chance de pintá-lo como quiser.

“Bilhete Premiado”

Nos resumimos a isso, algumas dezenas. Parece que todo objetivo de um brasileiro é atingir a glória de ter muito dinheiro e nada para fazer. Queremos tudo de graça, de mão beijada, de preferência que seja delivery. Nós trabalhamos literalmente para isso. Ter em nossa caixa de e-mails todas as promoções, todas promessas de um milhão. O país realmente está cheio de sonhadores, isso eu não posso negar, pois bastam as promessas. E olha que eu nem quero falar de eleições. Cada vez que eu vejo a propaganda da Mega da Virada eu penso, que quadro patético nós fazemos parte. Fazemos fila na lotérica, mas somos incapazes de parar na porta da prefeitura que aumenta os próprios salários de 6 mil para 19 mil reais em uma única madrugada. Quem disse que inflação acabou?(aumentos chegaram a 236%). Mas a gente gosta é disso mesmo, de ser sacaneado em 3 vezes sem entrada. Bater palma para quem ganha mais de 20 mil e te paga 545 reais por mês. Miséria, violência, corrupção, saúde, educação, nada disso move um brasileiro se quer, mas 170 milhões… Não somos tão diferentes daqueles que nos governam, não é mesmo? Já desistimos também da ética, queremos é deixar o quanto antes este hall dos trabalhadores. Construir o país, ajudar o próximo, praticar cidadania, isso não é para gente, é quem não tem o que fazer, não tem dinheiro. Esse é o nosso imaginário coletivo que é replicado e dá 50 pontos de audiência no horário nobre.

O brasileiro na verdade paga para não ter que ter consciência.

“Obsoleto”

CUIDADO VEICULOS

É preciso estar atento a nova ordem mundial. A máquina precisa de nossa atenção, de todo nosso cuidado. Dane-se a saúde e liguemos os ares condicionados. Sim, pois até o ar é condicionado pela máquina, o que ela não pode fazer pela gente? Ela leva, ela transmite, ela carrega, ela multiplica. Nós pobres humanos sentimos, dizemos pensar. Pouco, perto das multifuncionais. Eu tenho faixa onde posso cruzar, o carro pode ir em qualquer lugar. Eu mal me ajeito na cadeira, mas o laptop tem espaço sob medida. Para falar a verdade esta carcaça está mesmo ultrapassada. Cheia de dores, acumula uma lista de doenças, nem a mente funciona mais. Não precisa ter quilometragem, hoje em dia todo humano tem problema, desde sempre. Não tem TI suficiente para atender tanta necessidade, muito menos peça de reposição. São psicólogos, terapeutas, otorrinos, ortopedistas e pediatras, afinal parece que já nascemos com defeito. Talvez a placa esteja certa, nós que temos que estar atentos, há tanto que pode ocupar nosso lugar. Foi ao me comunicar pela máquina, sentindo sem ver, imaginando a fala, fazendo expressões para o vazio, foi que medi toda nossa impotência perante ela. Tornou-me obsoleto ao fazer do meu abraço uma mera ilusão. Cada dia somos mais máquinas, veículos evitando contato.

“Forjar”

Espaço. Ele é construído de limites muito duvidáveis já que qualquer um pode vir e num dia qualquer ver um pouco mais além daquilo que você determinou como fim. Nós preenchemos o espaço, aliás, mais que isso. Nossos desejos, nossas essências, nossas vidas preenchem. O lugar é algo cheio de significados pessoais, e só se torna lugar porque tem sentido. Todos nós sabemos onde depositamos o que somos. Os lugares que decidimos, que percebemos pertencer.

Pois bem, como se esvazia um lugar? Como se rouba todo um sentido? Você impõe regras, controla seu acesso, segrega seus componentes, tira seu conforto, transforma tudo em paisagem. No passar dos anos, lentamente, diante todos os olhares aquilo que era de cada um torna-se de poucos. Não tem mais praças, bancos ou traves para o futebol. Tudo ganhou nome e função. O lugar que era encontro se tornou passagem. Uma cidade fantasma habitada por alguns que ocupam seu espaço sem propósito, outros que tentam ressignificar seu objetivo. Abandonado por aqueles que a cultuam, e um estorvo para aqueles que a dirigem. Como podemos chamar de público um lugar que ignora a vida? Um espaço transitório e efêmero como tudo que nos vendem nessa modernidade. Algo sem sentido, com função e sem alma. … assim que se forja uma imagem, baseado no vazio. Esse espaço é um símbolo da nossa decadência, da nossa falta de rumo, que não rediscute, que não propõe, que é mais uma peça na engrenagem, que também excluí. Não se engane, o pensamento e o humano também são descartáveis.

“Eu comprei uma primavera”

Os casacos insistem em permanecer no repertório. O sol brinca de verão e a chuva quer atrasar a estação. Já não sei como arrumar a cama. Juro que a primavera chegou, vi de suas cores pelas ruas, avançando pelas paredes, crescendo em gramados nos jardins. Mas basta fechar a janela para acordar em algum outono desavisado, sem respeitar nossos botões prontos para abrir. Gostaríamos de deixar o armário em casa e segurar o cabelo dela com a rosa roubada do vizinho. E cá estamos a abrir nossos guarda-chuvas, inventando alguma outra moda, desistindo de nossos romances. Entregaram a estação errada e não tem como ligar para o PROCON, quem dera pudessem nos ressarcir com uma caixa de primaveras. Mais um dia escorre pelo vidro.